Foto de Perfil: Manuel Patuleia
"A música foi sempre o meu “quebra-stress”. Sou um tipo feliz."
Homem multifacetado, nasceu em 1946 no Bombarral. Marcou-o a morte do pai quando tinha 4 anos. Estudou em Santarém, depois em Almada. Regressou à terra que o viu nascer para dar os primeiros passos na sua carreira profissional. O Ministério das Finanças acolheu-o, e foi nesta área que serviu os bombarralenses ao longo de vários anos. Todavia, não era apenas o som dos números que trauteava na sua cabeça. As notas, também eram musicais e Manuel Patuleia rendeu-se à paixão pela música. Já lá vão mais de 50 anos dos Távoras. Meio século que Manuel preencheu sobretudo com sons, já que as imagens acabaram por rarear até se desvanecerem nas memórias. Os sons da máquina de escrever porque escreveu livros. Os sons da guerra porque a viveu. Tiros, explosões, emboscadas, a chamada dos soldados, as vozes dos bravos portugueses em uníssimo evocando força e coragem. Às armas, às armas. Outubro de 69. Bastou um só dia, e a vida de Manuel Patuleia nunca mais foi a mesma. Hoje, este homem com H muito grande é um homem que não vê, mas que tem mais visão que muitos homens. Um homem que é cego, mas que não cegou para a vida.
“Na altura da revolta, muita gente fugia para o estrangeiro. Tive a oportunidade de ir para França, não quis. Pensava que aqui é que era o meu lugar mas, ironicamente, acabei por ir para Angola. Posso falar do depois do 23 de Maio de 70 como todos os portugueses falam do depois do 25 de Abril de 74.”
Foi nessa altura que perdeu a visão?
Sim. Foi em Angola que perdi a vista. Uma mina. Explodiu mesmo à minha frente. O início foi difícil. Estive 1 semana em coma. Tinha ligaduras em todo o corpo, parecia uma múmia. Foi uma “saga” para recuperar tudo, para voltar a ser quem era, mas nunca mais voltei a ser quem era. Quem vai à guerra não volta igual e quem fica cego por mais voltas que dê, jamais volta a ser quem era antes. Mas creio que consegui superar essas dificuldades. “Virei a mesa”, continuei. Em Barcelona consegui recuperar a vista parcialmente. Ainda voltei a conduzir durante uns 3 ou 4 anos, casei, tive 2 filhas e a vida foi-se construindo ou melhor… reconstruindo até aos dias de hoje em que já tenho 5 netos. E são eles que agora me mostram todos os dias que a vida vale mesmo a pena.
Alguma vez sentiu pena de si próprio por ser invisual?
No início senti que era muito complicado ver a vida sem vista. Pena de mim próprio, nunca senti. Rapidamente compreendi que tinha que voltar a querer viver. Um dia, cheguei ao espelho e não vendo o meu reflexo, pensei: “ Tu agora és este e não o outro. Tens que fazer o máximo de omeletes com os poucos ovos que tens.” Foi aí que me aceitei.
Esse episódio dramático da sua vida, mudou-lhe a perspectiva de alguma forma?
Aquilo que penso é que o que me aconteceu era para me levar. Mas eu fiquei. E se fiquei é porque tinha muito o que fazer, muito o que aproveitar. Esse episódio serviu para me mostrar que eu não podia desperdiçar nada. Tive uma formação rigorosa, não tanto no sentido religioso, embora tenha meio curso de padre. Andei 6 anos num seminário. Naquela época, o ensino e sobretudo a educação cívica dada no seminário era muito forte e deixou-me marcas para a vida. Moldou-me. Trouxe-me coisas importantes. Não apenas os meus valores morais, os meus princípios de vida, a minha fonte de força, mas também de inspiração. Foi lá que também aprendi música. Isso já diz muito.
Então a música também o moldou e é uma paixão que o tem acompanhado ao longo da vida…
Sim. Fui organista na igreja do Bombarral até 1965. Imagine que antes nem gostava de ir a bailes. Um dia fui. Era um baile de Carnaval e aprendi a dançar. Depois do baile, a admiração por certos conjuntos que existiam na altura despertou o “bichinho”. Na altura em que apareceram os Beatles, era o que dava gosto ouvir na rádio. Em 65 formávamos os Távoras e os Távoras ainda existem. De todos os elementos da banda, sou o único que ininterruptamente, desde que o grupo existe, estive sempre presente. Vamos ter um concerto no dia 14 de outubro no Teatro Eduardo Brazão.
E o Manuel sendo um homem de paixões e tão determinado é também um homem de causas. Tentou sempre integrar-se na comunidade de uma forma que fosse mais útil à comunidade do a que si próprio…
Sim. Estive sempre envolvido com várias associações. Envolvi-me também na política. Estive num grupo de independentes, o “Bombarral Primeiro” com uma pessoa que não sei se conhece, o Rui Viola…(risos). Acho que esse grupo foi de certa forma uma pedrada no charco de algum marasmo político que havia na altura. De resto, entreguei-me sempre muito ao voluntariado. Em 1983 fiz parte de uma associação das Forças Armadas onde estive continuamente ao longo 25 anos. Em 2013 fui representante de associações para pessoas com deficiência. Estava na política na altura, na Assembleia Municipal do Bombarral, e creio que esse ano de 2003 acabou por proporcionar uma inovação muito útil no edifício dos Paços do Concelho: O elevador que vai até ao último andar. Em 2010, o Bombarral tem o seu Rotary Club e eu envolvi-me também nesse projecto.
E a escrita? Onde é que ela entra na sua vida?
Fui escrevendo aí pelos jornais e escrevi dois livros. Um foi revisto 10 anos depois de o ter escrito e é sobre a história do concelho do Bombarral e outro é um livro de poesia e a poesia não se escreve de rompante. Não sou um poeta profissional. Vou fazendo uns poemas quando a veia incha (risos).
Tudo o que o tem preenchido dá-lhe de alguma forma a sensação de que fez tudo o que gostaria de ter feito?
Eu tenho tido sorte porque nunca precisei de procurar as coisas. As coisas têm vindo ter comigo e eu limito-me a aproveitá-las. Aceito sempre o que a vida me dá. Seja bom ou mau. Quando é bom, agradeço. Quando é mau, aceito. Não brigo. Não contesto. Aceito. Gosto muito de ajudar, de dar o meu melhor aos outros e no meio disto tudo, tenho a música que nunca deixou de me compensar das agruras. A música foi sempre o meu “quebra-stress”. Sou um tipo feliz.
E se pudesse voltar atrás no tempo, mudaria alguma coisa?
O óptimo é amigo do bom. Tudo o que se tem passado comigo serviu para me construir. Apesar dos momentos menos bons a vida foi boa para mim. Sinto-me realizado, tenho uma família que é o meu porto de abrigo, uma mulher que tem sido uma grande companheira de jornada. Tenho tudo, porque tenho boas “bengalas”.
E tem tudo porque também deu tudo…
Ainda tenho muito para dar.
O que é que o Manuel gostaria ainda de ver acontecer?
Gostava de ver os políticos em Portugal, sobretudo os políticos locais, a pensar muito mais no povo que representam do que nos resultados eleitorais. Gostava de os ver a viver a política intensamente, sempre focados em servir as pessoas, porque é esse o compromisso. E gostava também que houvesse no país mais equilíbrio na distribuição material. Cada vez mais há muitos com pouco e poucos com muito. Hoje há um tipo de pobreza que é perigosa, a pobreza envergonhada. Não sabemos que ela esta lá porque se esconde, mas está.
Que mensagem gostaria de deixar para os leitores do Jornal Região Oeste?
Não deixem para amanhã o que podem fazer hoje. Vejam quais são as vossas necessidades mas não criem necessidades. Vejam quem podem ajudar. Quento mais depressa estenderem a mão a quem precisa de ajuda, mais depressa o tiram da aflição. Quem ajuda os outros ajuda-se a si próprio. O lema do Rotary diz “sirva antes de se servir e pense nos outros antes de pensar em si.”
Melhor Qualidade- Persistente
Pior defeito- Exigente
Comida Favorita- Cozido à portuguesa
Música Favorita - Penny Lane (Beatles)
Local favorito - A minha casa
Melhor Momento- O nascimento dos meus filhos e netos
Pior Momento- A morte da avó e da mãe. Ficar sem visão não foi um momento mau. Foi um acidente de percurso. Momentos maus acontecem quando perdemos para sempre quem amamos.
“E dado que quisemos que assim fosse,
Ganhemos novas asas de vencer
Pois nunca terá fim o que é tão doce.”
Excerto do poema “ Asas de Vencer”
(Manuel Patuleia)
Fotografia: Margarida Silva
Texto/Entrevista: Ana Cristina Pinto
Texto/Entrevista: Ana Cristina Pinto
Foto de Perfil é uma rubrica do Jornal Região Oeste
Artigo publicado no Jornal Região Oeste
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