Os Empregos do Passado
“Aquele som, não
era do padeiro, nem do peixeiro, nem da senhora que vendia enxoval
porta a porta, muito menos da carrinha da Gulbenkian que trazia a
biblioteca itinerante. Era o amola-tesouras.”
Atravessavam aldeias
a pé porque eram poucos os que tinham transporte próprio e os táxis
eram raríssimos. Não carregavam nenhuma maleta com instrumentos
médicos. Bastava-lhes no local, uma bacia de água quente e toalhas
limpas. A ideia era que tudo corresse bem, porque se corresse mal
“era a vontade de Deus.
Estávamos nas mãos D’ele.”
É assim que Natália recorda o nascimento dos filhos. Natividade e
Emília foram as parteiras que conheceu naqueles idos de 70, quando a
modernidade já tinha chegado às cidades grandes, mas ainda não
tinha visitado as aldeias. Não importava a hora do dia ou da noite.
Sempre que havia um parto para fazer, lá iam elas ajudar mais um
pequeno ser a entrar neste mundo.
“E não tinha
medo de ter os filhos em casa?”
Perguntamos. “Não tinha medo,
porque estava nas mãos de Deus.” Repete.
Só na década de 80,
começou a vulgarizar-se a ida ao hospital para dar à luz. A
Maternidade Alfredo da Costa, dava assistência às parturientes que
iam do Cadaval “muitas vezes já
com a criança à boca do corpo” refere.
Se o risco de parir em casa era grande para mães e filhos, encetar
uma viagem pela nacional até à capital não tornava o risco menor.
Havia sempre a possibilidade do parto acontecer pelo caminho.
A A8
que hoje encurta as distâncias entre o Cadaval e Lisboa ainda não
existia. Mas existiam as parteiras. Eram mulheres do povo, sem
formação académica ou profissional para o trabalho que se
propunham a fazer, mas faziam-no. Munidas da sua própria experiência
de dar à luz, mais a que foram somando nos partos a que assistiram,
estavam prontas a dar resposta a quase todas as situações.
Quase
todas porque algumas, verdadeiros desafios à sua capacidade de lidar
com o imprevisto, resultavam na morte das mães e/ou das crianças.
-“No parto da minha filha, a
mais velha, tive um episódio de eclampsia. Fiquei muito mal. A minha
avó Natividade que era a parteira chamou a Ti Emilia que era mais
experiente e me encaminhou para a Alfredo da Costa. A criança já
tinha nascido e estava bem, mas eu fiquei à beira da morte.”
–“E no segundo filho?”-
perguntamos. “No segundo também
surgiu uma complicação porque o bebé não tinha dado a volta. A
parteira não podia puxar-lhe a cabeça porque ele estava de rabo e o
parto foi muito difícil. Mas acabou tudo bem”
Explica.
Não havia anestesia
e os pontos eram dados a sangue frio e muitas vezes nem eram dados.
-“Com o tempo, cicatrizava
tudo.” Refere.
Nos casos em que o
perigo passava ao largo e se ouvia o primeiro choro, “era
uma grande alegria, tanto para nós, quanto para a parteira e o
vínculo entre nós e ela ficava para sempre. A gratidão era para a
vida.”
Filha da parteira
Emília, Ofélia, quando cresceu tornou-se quase enfermeira. Quase,
porque fazia praticamente tudo o que compete às profissionais de
enfermagem, mas Ofélia não tinha estudos. Todavia, era ela quem
cuidava dos doentes da aldeia, fazia curativos, dava injecções e
“monitorizava” a evolução dos seus doentes. A população das
freguesias do Peral e Figueiros estavam quase inteiramente nas suas
mãos desde que a gravidade das situações não exigisse cuidados
de maior e uma visita ao hospital. As amigdalites, quando não eram
travadas com antibióticos, passavam para os cuidados da Ofélia, que
preparava as agulhas cuidadosamente guardadas numa caixa de inox, e
que depois esterilizava em álcool flameado antes do doente sentir a
pica numa das nádegas.
Era um trabalho
altruísta, a custo zero. Muitas vezes recompensado apenas com uma
saca de batatas ou uma cesta de fruta.
Às vezes, só 1 dúzia de ovos e um obrigada sincero pagavam o
trabalho desta mulher que roubava tempo à sua própria família para
cuidar das famílias alheias. A casa onde vivia, apetrechada com uma
pequena enfermaria, tinha tudo o que era preciso para tratar das
pequenas maleitas. Uma marquesa onde deitar os doentes e um armário
onde eram armazenadas pomadas, ligaduras, tintura de iodo, álcool,
água oxigenada e uma colecção de pinças e agulhas. Tudo para bem
da comunidade.
Francisco Moita
fazia-se ouvir pelas aldeias que adentrava, com um característico
buzinar. Não confundia ninguém. Aquele som, não era do padeiro,
nem do peixeiro, nem da senhora que vendia enxoval porta a porta,
muito menos da carrinha da Gulbenkian que trazia a biblioteca
itinerante. Era o amola-tesouras. Começou na década de 40 quando
tinha então pouco mais de 10 anos e assim ficou por mais de
30.Pedalava por caminhos de terra que ligavam as aldeias umas às
outras e percorria todo o Concelho das Caldas da Rainha, para prestar
assistência aos seus clientes. “Também
tinha trabalho em Rio Maior, Cadaval e Bombarral… aventurava-me e
ia para onde calhava. Cheguei a ir para Peniche e para Nazaré.”
Explica.
“E só amolava tesouras?” Perguntamos. “Não. Também amolava
facas e navalhas. E quem tinha tachos e panelas para arranjar, pôr
asas ou tapar buracos…fazia um bocadinho de tudo. Aquele tempo não
era como hoje. As pessoas não compravam novo. Mandavam arranjar.”
Francisco ainda
refere que nem sempre lhe pagavam em dinheiro. “Às
vezes, trabalhava em troca de um prato de sopa. Um naco de pão com
chouriço e um copo de vinho.”
Desses tempos guarda boas recordações. Foi durante uma dessas
viagens de trabalho que encontrou o amor da sua vida. “Eu
gostava de piscar o olho às raparigas. Era muito namoradeiro. Tive
uma rapariga muito jeitosa ali para os lados do Barrocalvo, mas o pai
dela era bravio. Tive medo. Arranjei rapariga para casar nos
Carvalhais de Rio Maior. Essa é que foi amor á primeira vista.”
Entre pedalar e
amolar tesouras, Francisco namoriscava as raparigas das aldeias
quando havia tempo e oportunidade. Quando não, em dias de calor
parava para a sesta à sombra de qualquer árvore e no inverno,
refugiava-se da chuva na taberna mais próxima e jogava à bisca.
“-E se fosse
hoje? O que é que gostaria de fazer se fosse hoje um jovem?”
perguntamos.
“-Não sei. Hoje é tudo diferente. Amola-tesouras é que não era
de certeza.”
O trabalho intelectual que exija criatividade, será dos poucos a sobreviver neste novo mundo que estamos a desenhar e que pouco ou nada precisará de nós.
Artur Esteves foi
guarda-redes em vários clubes de futebol, desde a união Desportiva
Praiense (Praia da Vitória), o Sport Clube Angrense (Angra do
Heroísmo) ao Bombarralense, mas foi na base militar das Lajes
(Açores) que exerceu uma profissão agora em desuso: Era polícia
sinaleiro. “-Fui render o
melhor sinaleiro do mundo!” Orgulha-se.
Hoje, finaliza uma longa caminhada à frente de uma drogaria no
Bombarral.
Tintas e ferragens
fazem o grosso dos produtos que quase por meio século vendeu.
Os hipermercados e
outras lojas especializadas em materiais para a construção civil,
levaram-lhe boa parte dos clientes e hoje, 45 anos depois de abrir as
portas, prepara-se para as encerrar.
“-Tem pena de
deixar este negócio?” Perguntamos.
“-Tenho. Passei aqui bons
momentos e fiz uma boa clientela. Um espaço como este vai fazer
falta aqui no Bombarral, porque os hipermercados têm muitas coisas,
mas há produtos que só nós é que temos e além disso, nós não
vendíamos apenas. Também sabíamos aconselhar e dávamos atenção
ao cliente.”
A vida de Artur
complicou-se com um problema de saúde da esposa que a roubou à
atividade. “-Era ela que estava
aqui mais tempo ao balcão. Agora que já não pode, não é a mesma
coisa.”
As drogarias, antigas
casas de comércio, foram fechando as portas à medida que os
hipermercados foram abrindo as suas, mas não só. O facto de hoje,
todas as famílias terem transporte próprio, contribui para uma
maior dispersão de clientes. É muito fácil ir-se a qualquer parte
do país comprar seja o que for.
Mas se profissões
como parteiras, curandeiras, amola-tesouras, policias sinaleiros, e
gerentes de drogarias de bairro já se extinguiram, outros há que
ainda há quem as exerça, mas cada vez menos. E boa parte delas
estão mesmo em vias de extinção.
Segundo a Cursos.com,
plataforma espanhola para o emprego na Península Ibérica,
profissões como Agente de viagens, empregados bancários, operadores
de telemarketing, caixas de supermercado ou até mesmo maquinistas de
comboios, estão condenadas à extinção. Todas estas profissões
serão, dentro de aproximadamente 3 décadas, substituídas por
tecnologia que fará exactamente o mesmo que a mão humana, sem os
encargos que hoje recaem sobre as entidades patronais. Muito
provavelmente em 2050 já não haverá espaço no mercado para
trabalhos manuais suscetíveis de serem substituídos por uma máquina
ou um computador.
Texto: Ana Cristina Pinto
Fotografia: Eduardo Carvalho/ Internet
Artigo publicado no Jornal Região Oeste
www.facebook.com/JRO-Jornal-Região-Oeste
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