Lenços há muitos…
21 ranchos folclóricos oriundos de vários pontos do país, subiram ao palco da Mata Municipal do Bombarral por ocasião do IV Festival de Folclore e I Picnicão, evento promovido pela Associação Empresarial Bombarral Sustentável. A música, as danças e a indumentária de um Portugal de outros tempos, levou o público a uma viagem ao passado, revivendo tradições hoje apenas vivas através da etnografia que vai preservando os antigos costumes.
Não é necessária especial atenção para percebermos as diferenças que nos separam do povo que já fomos. À excepção das festas mais populares, as sonoridades de hoje são outras, a expressão corporal através da dança é todo um mundo novo e o vestuário do presente, em nada se parece com o do passado. Se retrocedermos apenas 40 anos, encontramos, sobretudo no meio rural, homens e mulheres envergando as roupas que hoje só encontramos nos bailarinos de um rancho folclórico.
O universo feminino primava pelo recato. Saias compridas ou por baixo dos joelhos, culotes até à meia alta, e invariavelmente, o lenço a cobrir os cabelos.
No tempo que hoje vivemos, marcado pela enorme resistência a culturas que ainda mantêm trajes semelhantes, convém perceber porque dizemos que não aceitamos subversões de culturas diferentes quando na realidade a subversão decorreu ainda em pleno Estado Novo, timidamente, e foi ganhando terreno a partir dos anos 70. Apenas uma década depois e Portugal, à semelhança de toda a Europa, sofria os efeitos de uma americanização que não contestou, pelo contrário, abraçou convictamente. E quanto a esta subversão, nada a apontar. Tratava-se afinal, de progresso.
De onde vieram as calças de ganga?
Concentremo-nos na indumentária e surgirá a questão: De onde vieram as calças de ganga? Na realidade a história dos jeans inicia-se em Nimes, (França), onde o seu tecido foi fabricado pela primeira vez em 1792. Por ser um tecido robusto e durável, sem necessitar de grandes cuidados, começou por ser utilizado essencialmente em roupas para trabalhos no campo e depois pelos marinheiros italianos que trabalhavam no porto de Génova. Só mais tarde chega aos Estados Unidos da América. Na altura da corrida ao ouro na Califórnia, em 1853, Levi Strauss, um jovem judeu alemão que vendia lona para as carroças dos mineiros substituiu o tecido por outro mais resistente, flexível e confortável. Adotou então a ganga francesa. E dos EUA, essa mesma ganga invadiu então a Europa incluindo Portugal.
E o lenço? Está mesmo ligado ao islamismo?
O abandono do lenço, outra transformação na indumentária feminina avança na mesma proporção com que ganham força os movimentos de emancipação das mulheres. Prescrições acerca da roupa (as chamadas dress codes) estão em vigor em grande parte do mundo islâmico, variando conforme a zona geográfica e a camada social. Quanto ao véu, existe uma diversidade de modelos usados, quer por mulheres do Afeganistão, de Argel ou da Alemanha, e muitas vezes as diferenças estão presentes no seio dessas próprias sociedades. Por outro lado, assistimos hoje a uma certa uniformização do vestuário islâmico, que advém da tendência ao fundamentalismo no Islão e o desejo dos muçulmanos se afirmarem, frente aos ocidentais, reforçando a ideia de uma (comunidade global islâmica).
Argumentamos com frequência que austeridade na doutrina é a motivações para o uso do véu. Todavia, muitas mulheres vestem um traje considerado islâmico simplesmente por ser tradição no seu ambiente. Outras, adoptam-no sob pressão, quer do Estado, quer do meio social direto. Mas não são raras as mulheres islâmicas modernas que põem o véu por iniciativa própria, por razões práticas, como ato de auto-afirmação ou como uma forma de “empowerment feminino”.
No mundo ocidental, o véu tem sido recorrentemente associado ao mundo islâmico, embora de modos diversos. Nos escritos orientalistas dos séculos XVIII e XIX, até ao final do Império Otomano, o véu apontava o erotismo das cidades do Magrebe e do Médio-Oriente, com os seus haréns e os seus contos das mil e uma noites. "Sensualidade" foi uma das imagens mais poderosas que se criaram entre os ocidentais sobre o mundo islâmico.
Hoje em dia, provavelmente, a primeira associação que os ocidentais fazem ao Islão é a da "opressão da mulher", que também se reflete no uso do véu.
Estudiosos islâmicos recorrem, para explicar e justificar as suas regras do vestuário feminino, às escrituras sagradas. Estas são o Alcorão e o Hadith, os ditos, as ações e as decisões de Maomé. Todavia, as mesmas regras quanto ao uso do véu são observadas em culturas que nada têm a ver com o Islão. No Judaísmo também as mulheres cobriam a cabeça. Recordemos todas as imagens que conhecemos de Maria, mãe de Jesus. Não existe nenhuma em que ela apareça sem o manto. Aliás, o uso do véu, lenço ou manto, é transversal a todas as culturas, incluindo a europeia, desde a Holanda à Inglaterra até há 1 século atrás. Não há portanto, relação direta entre o uso do véu e o Islamismo.
Talvez possamos concluir sem grande esforço que o uso do lenço se devia mais a questões culturais que religiosas. Talvez, dependendo das classes, possamos mesmo afirmar que o uso deste acessório se devia sobretudo à utilidade do mesmo. As mulheres portuguesas que trabalhavam os campos protegiam-se assim do sol, tal como as mulheres árabes que tinham ainda o problema adicional das areias, que frequentemente pairavam no ar levando as mesmas a tapar também o rosto.
Por cá, relembramos a mulher algarvia, que há pouco mais de um século, também usou “burca”, sem as habituais conotações religiosas. À capa negra que se estendia da cabeça aos pés e só permitia ver os olhos, foi dado o nome de bioco ou rebuço. Um antigo governador civil de Faro, Júlio Pinto de Lourenço, decretou que este traje tradicional fosse banido.
O governante que via nesta peça de vestuário “vestígios da dominação muçulmana” entendeu que o mesmo não tinha razão de existir no final do século XIX e extinguiu o bioco. No seu livro de crónicas O Algarve, publicado em 1894, justifica: “Trata-se de uma “máscara” que pode dar azo a certas libertinagens.” Uma das razões invocadas prende-se com a fidelidade conjugal. “Imagine-se uma frágil pecadora que, vestida de forma a não ser reconhecida, poderia atirar-se sem perigo a aventura amorosa-romanesca ou a façanha de infidelidade conjugal”, afirma. Por isso, servindo-se dos poderes que lhe estavam conferidos, decretou: “É proibido nas ruas e templos de todas as povoações deste distrito o uso dos chamados rebuços ou biocos de que as mulheres se servem para esconder o rosto”, refere o artigo 32, do Regulamento Policial do distrito, publicado a 6 de Setembro de 1892.
Com alguma semelhança a este traje encontra-se o capelo, da ilha Terceira – que ainda faz parte do folclore açoriano e se tornou símbolo dessa região. No Algarve, a extinção oficial deu-se em 1892. Porém, continuou a ser usado em Olhão até meados dos anos 30 do século XX.
O senso comum diz-nos que não se deve trazer o passado para o presente, mas também não é menos verdade que se compreende melhor o presente quanto melhor se conhece o passado.
De Montemor- o -Novo a Salvaterra de Magos, de Ponte de Lima ao Bombarral, da Lourinhã a Albergaria- a –Velha, o lenço, o manto, o véu, estão lá, e isso mesmo testemunham todos os que assistiram a este IV Festival de Folclore. De nada adianta que se diga que não faz parte das nossas tradições.
Artigo publicado no Jornal Região Oeste
Texto: Ana Cristina Pinto
Fotografia: Ana Cristina Pinto/ Internet
Artigo publicado no Jornal Região Oeste
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