O Abandono Tem Nome
Amigos (mas não) para sempre

Guida. Está nas instalações na APAC-Cadaval
Em Setembro de 2014 entrou em vigor a primeira lei que criminaliza maus tratos e abandono de animais de estimação, com penas de prisão efectiva entre 6 meses e 1 ano. Desde o 1º dia de Maio, vigora igualmente novo estatuto jurídico que reconhece os animais como "seres vivos dotados de sensibilidade e objeto de proteção jurídica.” Quem mata ou agride um animal fica obrigado a indemnizar o seu proprietário, assim como os indivíduos ou entidades que o socorram, pelas despesas inerentes ao seu tratamento. Já o proprietário do animal deve assegurar o seu bem-estar e respeitar as suas características. Todavia, na prática, o que é que mudou realmente?
Basta-nos visitar algumas associações de protecção aos animais na Região Oeste, para percebermos que entre cães e gatos, continuam a existir largas centenas de casos de abandono. Graça Rito, responsável pela Rede Leonardo garante que não diminuíram desde 2014. Cada animal resgatado conta uma história diferente e igual a todos os outros. Partilham o mesmo destino trágico. A dada altura das suas vidas, vêem-se imprestáveis, inúteis e reduzidos a lixo. Felizmente para eles, há quem se importe. Nos abrigos que visitámos, há mãos humanas que alimentam, afagam e trabalham diariamente para que nada lhes falte. Essas mãos são de voluntários. Homens e mulheres que se dividem entre compromissos profissionais e familiares, e os cuidados diários aos animais que, a bem da verdade, nunca foram de estimação. Não recebem mais nada em troca, além da satisfação de saberem os animais seguros. Com um pouco de sorte, aparecem famílias dispostas a acolher o que outras mandaram fora.
Podemos tentar adivinhar as motivações de quem, à luz do dia ou na calada da noite, reúne coragem para deixar um animal indefeso à beira de uma estrada ou amarrado a um poste. Ou talvez devamos substituir aqui coragem por cobardia, porque é de cobardia que se trata. Todos os dias, sobretudo nas redes sociais, nos deparamos com novos casos. O cão que foi mandado de uma ponte abaixo, o que ficou sozinho numa estrada e acabou atropelado, o que tem donos dotados de uma boa dose de indiferença ou crueldade e que o mantêm preso a meio metro de corrente, água fétida e comida bolorenta. Conhecemos ainda casos como os da Julie e da Guida, que foram simplesmente amarradas às portas dos abrigos, ou da Simone, um esqueleto a deambular em busca de refúgio e comida.
"Choram quando a porta do abrigo se fecha e aguardam ansiosas pelo dia em que a abrirá uma mão amiga que as guie para uma nova vida. Até quando ficarão à espera?"
Julie. Aguarda uma família nas instalações da Fiel Amigo- Bombarral.
Um destes abandonos chama-se Julie. Está desde 2015 na Fiel Amigo, associação do Bombarral que salva vidas caninas há 16 anos. Na Fiel Amigo, 70% dos animais são deixados à porta. Encaixotados, ensacados, presos por cordas. A criatividade é muita para quem, sem qualquer pudor se quer ver livre de um animal. A falta de chip na maioria impede a identificação dos tutores, mas quando essa identificação é possível, o confronto de nada serve. Segundo Mariana Lé, nos poucos casos em que os donos consideram a retoma do animal, voltam a abandoná-lo pouco tempo depois. A Julie, hoje com três anos, foi amarrada a quatro irmãos, e todos, literalmente, atirados para dentro do abrigo. Os irmãos da Julie (como ela, de porte grande) conheceram um final feliz com a adopção. A Julie, não. Mesmo estando esterilizada, chipada e com todas as vacinas em dia, espera ansiosamente por um humano que tenha um coração tão grande como o dela e a leve para um verdadeiro lar.
Reportagem no nº3 do JRO-Jornal Região Oeste
“Podemos julgar o coração de um homem pela forma como ele trata os animais”
(Immanuel Kant)
Guida é outro nome para o abandono. Arraçada de pastor alemão, tem apenas um ano de idade. Na primeira semana deste mês de Abril, alguém decidiu atá-la com uma corda à porta da APAC, no Cadaval. A Guida lambe-nos as mãos e pede-nos mimo, mal nos aproximamos. Mesmo no abrigo, não descura o que aprendeu em casa e aguarda pacientemente que uma das voluntárias a passeie na rua. A Guida, que sucumbiu à tristeza de se saber abandonada, passa os dias a chorar. Ana Cristina Neves, presidente da APAC, conta ao JRO que este abrigo, tal como outros que visitámos, está sobrelotado e receia que a Guida, confinada a um espaço exíguo, desista de viver.
Simone. Cuidada pelas voluntárias da Rede Leonardo- Caldas da Rainha
Na Rede Leonardo, nas Caldas da Rainha, o abandono chama-se Simone. Uma cadela Fila de São Miguel que tem ternura a transbordar pelos olhos. Não tem mais que 5 anos mas já foi mãe várias vezes. Há indícios de que terá sido usada para criação até ao dia em que a consideraram inútil. Desde então, o infortúnio bateu-lhe à porta. Fome, frio e outros perigos foram companheiros fiéis até ao momento em que a Rede a resgatou.
A Julie, a Guida e a Simone têm em comum o abandono e o temperamento dócil. Carentes, partilham mimos com quem se aproxima e pedem a retribuição desse afecto. Choram quando a porta do abrigo se fecha e aguardam ansiosas pelo dia em que a abrirá uma mão amiga que as guie para uma nova vida. Até quando ficarão à espera?
(Artigo publicado no Jornal Região Oeste www.facebook.com/JRO-Jornal-Região-Oeste )
Texto: Ana Cristina Pinto
Fotografia: Ana Cristina Pinto
Artigo publicado no Jornal Região Oeste
www.facebook.com/JRO-Jornal-Região-Oeste
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