E tudo o fogo levou...

Quando a Natureza se zanga...

(republicação da entrevista datada de Junho de 2017)







A maior tragédia de sempre em Portugal, com incêndios florestais aconteceu a 17 de Junho em Pedrógão Grande. Uma conjugação de fatores ainda sem explicação comprovada que atirou para a morte 64 pessoas e provocou 200 feridos além de milhares de euros de prejuízo com a morte de animais e a destruição de bens materiais. O JRO falou com quem esteve no combate às chamas e viveu o horror do passado fim- de-semana. Um “cliclone de fogo” descreve Pedro Lourenço, Comandante da Corporação de Bombeiros do Bombarral. 

Tendo em conta a sua experiência profissional, tantos anos dedicados a combater incêndios em várias partes do país, o que é que na sua opinião aconteceu, que diferenciou este incêndio de todos os outros que já combateu?

Um fenómeno meteorológico aconteceu ali e que levou a que o fogo se propagasse com uma velocidade muito elevada que acabou por ter dimensões fora do normal.

Mas fenómenos meteorológicos costumam acontecer. Não é a primeira vez que há trovoadas secas e no entanto foi a primeira vez que isto aconteceu… 

Eu estive lá, não logo no início mas no sábado fui para lá cerca das 17 horas e o que me foi relatado foi que houve ali uma espécie de “ciclone de fogo”. Foi o que me foi dito. E esse “ciclone” terá feito com que através do vento o incêndio se propagasse de uma forma muito violenta. Ninguém estava preparado para isto. Não há ninguém, não há dispositivo…não há nada que possa combater aquilo que, quanto a mim, foi o trabalho da Mãe Natureza. Foi a Mãe Natureza que foi culpada disto tudo.

Acredita então que a ignição deste incêndio foi um raio? 

Não sei. Não vou opinar sobre qual terá sido a ignição. Não sei. Só sei que os raios ou trovoada seca podem perfeitamente provocar uma ignição. 

Mas também já se diz que a trovoada seca se deu horas depois do início do incêndio… 

Não me vou pronunciar sobre isso. São apenas opiniões. 

E a sua opinião? 

Ouça, a minha opinião pessoal sobre aquele incêndio não a vou transmitir aqui. Eu só lhe posso dizer que andei lá muito tempo e sei aquilo que falei com as pessoas de lá. Pessoas com responsabilidade, agora opiniões há muitas. Eu comecei a minha carreira em 1980, tenho muitos incêndios naquela zona e aquilo que vi desta vez não se compara a todos os outros incêndios que já combati. Agora, arranjar culpados parece que é fácil, mas eu costumo dizer que contra a Mãe Natureza não se pode fazer nada. 

E isso desculpa que um sistema de comunicações tenha ficado em silêncio durante cerca de 14 horas? 

Não me dei conta de ter falhado tantas horas. Repare, todos os que estiveram ali fizeram o melhor que puderam. Aquele teatro de operações desde a primeira hora foi muito difícil para todos os operacionais no local e eles tomaram no momento as decisões que acharam que eram as mais apropriadas. Quando nós tomamos uma decisão não há ninguém que pense que aquela não é a melhor decisão. Pensamos sempre que é a melhor decisão. Depois temos que a avaliar para perceber se temos que reajustar essa decisão ou não, perante as condições, agora sobre o Siresp não faço qualquer comentário. 

Mas funciona? 

Tem falhas. 

Tem falhas quando mais precisam do Siresp? 

Tem falhas. Nós já sabemos que ele tem falhas, agora deixe-me dizer-lhe que as alternativas que temos são muito piores. 

Ainda têm que fazer a conversão das coordenadas com o Siresp ou essa aplicação já foi alterada? 

Não. As coordenadas não nos dão qualquer problema. O equipamento dá-nos as coordenadas que têm um desfasamento mínimo.




Mas relativamente ao corte nas comunicações, as corporações de bombeiros reportam essas falhas sempre que elas acontecem? 

Quando sentimos essa dificuldade, logo nos primeiros tempos, foi reportado ao Comando Nacional de Operações de Socorro (ANPC) aquilo que havia de “zonas sombra”. Fizemos um levantamento e indicamos onde estavam as “zonas sombra”. Esse trabalho foi feito. 

Apesar de terem sido identificadas essas zonas onde não há cobertura de rede, acha que valeria a pena um investimento num outro sistema de comunicações? 

Deixe-me dizer-lhe uma coisa: Nós só precisamos de um sistema de comunicações que seja fiável. Ainda há pouco lhe disse, que pela minha experiência prefiro ainda assim trabalhar com este Siresp do que com outros sistemas que já tivemos. Contudo, eu enquanto operacional no terreno, dou sempre indicações para termos os dois rádios em funcionamento. 

Relativamente ao corte da EN236 que não foi feito, terá resultado dessa dificuldade de comunicação? 

Eu já ouvi várias opiniões, muitas delas que partem de pessoas que não percebem nada de combate a incêndios. Eu não estive nesse local, por isso não sei dizer-lhe nada sobre o corte da estrada, mas volto a dizer que o que se passou foi muito violento e muito rápido. Não vou fazer mais comentários sobre isso. Posso dizer-lhe que estive ontem até ao final da tarde em Castanheira de Pera e uma das pessoas com quem conversei garantiu-me : “ Pedro, isto lá do alto até cá abaixo, queimou em 3 ou 4 minutos. Isto andava tudo pelo ar. Parecia um ciclone que apareceu aqui.” Se calhar, não querendo estar aqui a arranjar culpados, se o Decreto Lei 124 fosse cumprido na íntegra podíamos minimizar a gravidade dos incêndios. Limpeza de mato, respeito pelas distâncias, entre outras medidas de prevenção que devem existir na floresta. Depois, na minha perspectiva e tendo em conta diversos relatos, penso que as pessoas também não se sabem autoproteger e está provado que em determinadas circunstâncias as pessoas estão mais seguras em casa do que expostas ao desconhecido. 

Tendo em conta esse desconhecimento que as pessoas têm sobre a forma como devem agir no caso de uma calamidade, se os bombeiros fazem tantos simulacros de acidentes rodoviários, porque não investir mais em simulacros de incêndios e até outros como, tremores de terra, por exemplo? 

Nós fazemos. Mas repare numa coisa: há folhetos das autarquias e cabe às autarquias fazerem essa sensibilização. Esse trabalho tem que ser feito pelas autarquias junto das populações. Numa situação extrema de qualquer fenómeno mais destruidor as pessoas não estão preparadas para se autoprotegerem. Mas, as pessoas também têm que criar formas de aprender como agir numa situação adversa. Repare, por força da legislação todos os espaços públicos são obrigados a ter equipamentos e sistemas de segurança contra incêndios em edifícios. E eu pergunto: Quem é que sabe usar um extintor portátil? Numa sala de espectáculos por exemplo, se for accionado o alerta, as pessoas ficam sentadas serenamente e só saem, aos atropelos, já quando as chamas estão perto delas ou quando alguém as manda sair. Agora, nas escolas deviam aproveitar alguma disciplina onde fosse possível falar de segurança para cultivar estas noções nos miúdos. Noções que sejam válidas para os espaços urbanos e para as florestas. Relativamente aos tremores de terra, aqui no Bombarral o Agrupamento de Escolas Fernão do Pó, costumas fazer essas simulações. E nós também costumamos ir ao Agrupamento fazer simulações incluindo as de Suporte Básico de Vida. 

Relativamente a esta onda de solidariedade que se formou para ajudar as várias corporações dos Bombeiros, o que é que sentiu? Surpreendeu-o? 

O povo português é muito solidário. Nós recebemos muitos contactos de imediato e começaram logo a chegar ofertas de mantimentos que enviámos para Pedrógão Grande através de um veículo da Câmara Municipal. As doações foram tantas que nós tivemos que a certa altura, alertar as pessoas para se conterem um pouco porque tivemos a informação de que já havia dificuldade de armazenamento.



Mas também passou a informação de que muitos bombeiros que estavam na linha da frente não tinham acesso a esses bens… 

Não terá acontecido exactamente assim porque nós próprios levamos sempre alguma coisa para nos alimentarmos em caso de não haver outra forma de o fazermos. 

Não deve ser a Protecção Civil a responsabilizar-se pela alimentação dos bombeiros no terreno? 

Não é assim tão simples. Dou-lhe um exemplo: São duas da tarde. Tenho aqui um incêndio e vou precisar de 500 homens para o combate até às 8 da manhã. Onde é que eu vou arranjar 500 refeições? Ou seja, em termos de logística como é que eu daqui, até às 8 da noite, hora de jantar, consigo prever e arranjar alguém para fornecer 500 refeições? Se calhar aqui até se arranjava ou algo muito parecido com isso, mas há muitos locais deste país onde não é fácil. É muito difícil. 

Quantos operacionais do Bombarral estiveram em Pedrógão? 

Num primeiro período (primeiro dia) fomos 7 homens e dois veículos e depois fomo-nos revezando. 



Há pouco falou da importância da limpeza das florestas e do ordenamento do território, todavia sabemos que, até dadas as características da nossa mancha florestal, não será só por isso que deixarão de haver incêndios. Demoniza de alguma maneira o eucalipto? Acha que, tal como se tem vindo a falar, esta espécie só por si potencia os incêndios? 

Posso dizer-lhe que temos uma floresta desordenada e que há espécies mais propensas ao fogo, mas não posso fazer essa análise. Para além disso, também sabemos que a mão humana é a principal causa dos incêndios. Temos florestas com muito combustível e já sabemos que quando há tempo quente e seco há que haver cuidados redobrados. A limpeza é fundamental porque quanto mais tempo as florestas estão sem ser limpas, mais combustível ganham e quando o homem não limpa vem o fogo e limpa. 

Quando está num combate a um incêndio, nunca teve medo de perder a vida, ou perder um dos seus homens? O que é que sente nesses momentos? 

Não é fácil. Quando estou com os meus homens estou mais descansado do que quando estou em casa e sei que eles andam lá. Não é por falta de confiança. Eu confio neles, mas a preocupação é tanta que nem consigo dormir. 

Chegou a hora de profissionalizar os bombeiros? 

Eu acho que alguma coisa vai ter que mudar. E talvez não estejamos muitos distantes disso. Profissionalizar penso que pode ser uma solução porque parece-me que a mística dos bombeiros se perdeu. 

Porque é que se perdeu? 

Não sei explicar. Hoje vivemos numa sociedade que quer muito ser servida mas não gosta de servir. Penso que esse é o grande problema. Penso que a vida das pessoas mudou muito. Elas não têm a mesma disponibilidade. A velocidade com que hoje acontece a vida, deixa pouco tempo para se ser voluntário, para além de tudo o que se exige de nós. Hoje também temos muitas obrigações que não vão ao encontro das poucas disponibilidades que as pessoas têm. E quem vai pagar esta fatura vai ser a própria sociedade que qualquer dia quer um bombeiro e não tem. 

Será que isso acontece porque os bombeiros são pouco valorizados? 

Também. Hoje temos menos gente a integrar as corporações, e as que entram estão pouco tempo e portanto é difícil isto continuar assim. Por isso, penso que o caminho será mesmo profissionalizar os bombeiros e deixar campo aberto para os que querem continuar a ser voluntários. Mas é importante ter em permanência equipas com profissionais. 

Até para mais e melhor formação? 

Sim. Também. 

Tendo em conta a gravidade deste incêndio que desta vez provocou 64 vítimas mortais, 200 feridos, alguns deles em estado ainda muito critico, talvez seja também o momento para se falar da falta de meios de combate a incêndios… 

Nós precisamos sempre. Olhe, precisávamos de um veículo de comando novo, de um veículo florestal e de um veículo de tanque. Se estivermos a falar de coisas novas é tudo muito caro. 

E aqui no concelho do Bombarral há zonas de maior risco para incêndios florestais? 

Há 2 semanas andei eu, um técnico da Câmara Municipal e o Comandante da GNR a fazer um levantamento da zona para identificarmos locais de risco para incêndios florestais. Está tudo em relatório. 

E esse relatório ainda não saiu? 

Não saiu porque ainda nos falta ver uma freguesia mais a sul. 

Quer comentar algumas das zonas que vão constar desse relatório? 

Não vou apontar nenhum local, até porque não pretendo que as pessoas fiquem muito alarmadas, mas essas situações são preocupantes. 

Mas se identificar esses locais será mais fácil para as pessoas tomarem medidas de prevenção, não lhe parece? 

Nós estamos ainda a trabalhar. O relatório ainda não está terminado e quando estiver daremos essas informações à autarquia. 

Quando é que esse relatório estará pronto? 

Penso que dentro de pouco tempo. Ainda durante este verão. 

As zonas de floresta que vão constar nesse relatório são propriedade privada? 

Quase que garanto que é tudo privado.

Texto/Entrevista: Ana Cristina Pinto
Fotografia: Ana Cristina Pinto / Internet

Artigo publicado no Jornal Região Oeste
www.facebook.com/JRO-Jornal-Região-Oeste

Comentários

Mensagens populares