O outro lado da Inocência

Ser criança ainda é o que era?


Em 1950 celebrou-se pela primeira vez o Dia Mundial da Criança. Após a 2ª Guerra Mundial em 1945, a crise que assolou a Europa, China e Médio Oriente, levou a que as crianças se tivessem tornado grupos de risco, incidindo sobre elas os dramáticos efeitos da fome. Os mais novos, forçados a ajudar as famílias, abandonaram as escolas substituindo o ensino por vastas horas de trabalho diário. O analfabetismo estava então na ordem do dia, assim como números elevados de mortalidade infantil devido à escassez das condições de saúde.



Só depois do nascimento da UNICEF em 1946 se olhou pela primeira vez o problema. Em 1950, a Federação Democrática Internacional das Mulheres propõe finalmente às Nações Unidas a criação de um dia dedicado às crianças de todo o mundo. E pela primeira vez na história, a criança é vista como um elemento importante na sociedade. Um elemento que é preciso proteger independentemente da raça, cor, sexo, religião e origem nacional ou social.



Assim, não passa hoje pela cabeça de ninguém que possam ser negados às crianças os direitos ao afecto, amor e compreensão; a alimentação adequada; cuidados médicos; educação gratuita; protecção contra todas as formas de exploração e a crescer num clima de paz e fraternidade. São estas as premissas da Declaração dos Direitos da Criança aprovada pela ONU em Novembro de 1959 a que se seguiu a Convenção sobre os Direitos da Criança em 1989 e na qual constam 54 artigos. Esta Convenção tornou-se lei internacional em 1990.

Significa que desde então, são respeitados os direitos das crianças? Nem por isso.

Numa ‘March Against Child Labour’ em Nova Iorque, a repórter pergunta a uma criança que acompanha os pais: «Sabes porque é que estás aqui?». O miúdo respondeu: «Sei, é para protestar contra o trabalho infantil dos meninos que são obrigados a fazer Nikes no Vietname». A repórter insistiu: «Tens pena desses meninos?». A criança concordou: «Sim, acho que os meninos do Vietname também deviam poder jogar na Playstation e ver televisão, depois da natação.» 


Estima-se que no Mali, 55% das crianças entre os 10 e os 14 anos trabalhem. No Brasil serão mais de 15% e no Bangladesh cerca de 1/3. No Quénia são mais de 40%. Na China, cerca de 10%. Em todo o terceiro mundo a fotografia é a mesma, o trabalho infantil é não só uma triste realidade, como é, muitas vezes, a normalidade.

Milhões de crianças vietnamitas trabalham, nos arrozais, nas sweatshops, em fábricas de vão de escada que fornecem multinacionais e, principalmente, em casa. Serão os pais vietnamitas gente sem coração nem amor pelos filhos?

É fácil para um europeu do século XXI manifestar a sua indignação por estes números e exigir medidas para banir o trabalho infantil. Infelizmente não é possível acabar com o trabalho infantil gritando em manifestações ou publicando decretos-lei. A solução, a única solução, é o tempo. É esperar que os países mais pobres se desenvolvam, enriqueçam, e que os pais das futuras gerações consigam alimentar os seus filhos sem precisar de sacrificar a sua infância.


A ideia de que se podem castigar os países/empresas onde há trabalho infantil, através de embargos comerciais, essa sim, constitui um crime contra a pobreza. O miúdo do Vietname que passa a noite a coser bolas para a Nike, subcontratado por um qualquer subcontratado de um subcontratado da Nike, é invejado pelo filho do vizinho que trabalha 10 horas por dia nos arrozais ou nas minas e que também gostava mais de coser bolas em casa. Não só pagam melhor, como é uma bênção para os pais vietnamitas ter um filho a trabalhar em casa.

Se o ocidente decide impedir a importação de produtos vietnamitas por causa do trabalho infantil, está apenas a tirar os miúdos de casa e a mandá-los de volta para os arrozais. A alternativa nunca é a Playstation ou o computador. É apenas mais pobreza e mais trabalho.

“Apesar de todas as imperfeições, Portugal ainda vai sendo nesta matéria, um exemplo para muitos países do mundo.”


“Mas sim, há imperfeições. A prova disso é que o Instituto de Apoio à Criança recebe diariamente cerca de 10 pedidos de ajuda, muitos deles feitos por crianças que se sentem desamparadas e fragilizadas emocionalmente.” Refere Manuel Coutinho, Secretário- Geral do Instituto de Apoio à Criança (IAC). “A análise da situação da infância em Portugal caracteriza-se por um conjunto de avanços, impasses e retrocessos, desassossegos e desafios, na afirmação dos direitos da criança. A título de exemplo, pode-se referir que Portugal foi um dos primeiros países a aprovar uma Lei de Protecção à Infância em 1911, a consagrar na Constituição da República de 1976, como direitos fundamentais, a infância e a ratificar a Convenção dos Direitos da Criança em 1990. Contudo, muitos compromissos permanecem incumpridos, não porque os direitos das crianças sejam demasiado ambiciosos, inatingíveis ou tecnicamente impossíveis de aplicar, mas porque a agenda da infância não é ainda considerada como uma prioridade política, económica e social. Este facto é ilustrativo de uma sociedade em tensão entre os seus discursos oficiais sobre os direitos da criança e a acção na área das políticas para a infância. Vivemos apreensivos o início deste novo século porque as crianças são um dos grupos sociais que mais sofrem com a crise.” Continua.

“Só em 2016, o IAC recebeu 2.392 pedidos de ajuda feitos por crianças, pais, familiares ou vizinhos, mais 525 do que no ano anterior.”


"As crianças utilizam a linha de apoio para apresentar situações que as preocupam, que lhes causam dúvidas existenciais e o SOS-Criança é um dos poucos serviços que lhes dá voz na primeira pessoa", explica Manuel Coutinho que refere ainda que "as problemáticas" mais preocupantes são "as situações das crianças em perigo, em risco, e abusadas sexualmente, mas também as crianças que precisam só de falar com alguém.”

Sobre os novos desafios oferecidos pela acesso constante à Internet este responsável frisou que “Hoje em dia, quando aparecem situações preocupantes de desafios online perigosos e que fazem até algum terrorismo na vida das crianças. Temos de perceber que estes 'jogos' aparecem porque as crianças estão muito instáveis emocionalmente".

Na totalidade dos apelos recebidos em 2016 na linha SOS-Criança (116.111), foram identificadas 1.148 crianças, 41% das quais com idades entre os sete e os 13 anos e 28% dos zero aos seis anos. Em relação às problemáticas que chegaram ao SOS Crianças no ano passado, Manuel Coutinho apontou a negligência, ou seja, "o mau trato não intencional", como a questão mais relevante.

“Destes casos de violência doméstica resultam muitas situações de absentismo e/ou abandono escolar” 


O mesmo problema é apontado por Conceição Bento uma das responsáveis pela Comissão de Proteção das Crianças e Jovens do Cadaval. (CPCJ) “Por vezes, as crises económicas e sociais levam os pais a negligenciar o filho, mas "não podemos permitir que as crianças sejam o elo mais fraco desta situação". Conceição Bento refere ainda que "Os pais têm de perceber, de uma vez por todas que o casal parental é para sempre" e que "têm o dever de cuidar dos filhos mesmo quando se separam".

No Cadaval a CPCJ terminou o ano de 2016 com cerca de 84 processos trabalhados, situações de perigo com forte incidência na violência doméstica, dos quais resultou a institucionalização de 3 casos. “Tentamos sempre que as crianças permaneçam em ambiente familiar e só em último caso recorremos à institucionalização” Conceição Bento refere ainda que “Destes casos de violência doméstica resultam muitas situações de absentismo e/ou abandono escolar”. Para a responsável, não restam dúvidas de que a crise económica está por detrás da maioria das situações de violência e sobretudo de negligência. “ Agora começa a notar-se alguma melhoria, mas nos dois últimos anos verificou-se que as famílias estavam a viver uma grande instabilidade.”

A CPCJ do Cadaval tem maior incidência de casos que resultam em processos entre os jovens com idades compreendidas entre os 15 e os 17 anos. 


A autarquia cadavalense responde às necessidades da população infantil com algumas infra-estruturas ao nível da creche e educação pré-escolar como a Associação Murteirense de Cultura Desporto e Solidariedade Social e a Santa Casa da Misericórdia do Cadaval. A baixa natalidade no concelho, reflexo do resto do país, não exige para já outras apostas, sendo que o número total de crianças (utentes = 138) não ultrapassa o total de vagas disponíveis (208). Para além destas, o Agrupamento de Escolas do Cadaval promove a educação pré-escolar a mais 218 crianças do concelho. Relativamente às crianças com necessidades especiais, a Unidade de Ensino Estruturado para o Apoio à Inclusão de Alunos com Perturbações do Espetro do Autismo apoia 3 crianças e a Unidade de Apoio Especializado para a Educação a Alunos com Multideficiência e Surdo/ Cegueira Congénita dá apoio a 6 crianças.

No Bombarral a realidade replica-se. Segundo Ricardo Daniel, chefe de gabinete dos Assuntos Socias, este concelho contou com o nascimento de 180 crianças nos dois últimos anos, (86 em 2016) e tem uma CPCJ atenta a todos os casos de risco. No ano transato, de acordo com os registos do relatório anual, “foram transitados de 2015 para o ano seguinte cerca de 45 processos, e instaurados um total de 38 novos casos. Na gestão processual desse ano, foram arquivados liminarmente 29 processos, por se constatar não existir situação de perigo para as crianças sinalizadas. Em fase posterior foram arquivados 27 processos por eliminação de situação de perigo, mas também por outros fatores tais como maioridade ou alteração de residência para o estrangeiro. “ 

Recorde-se que em outubro de 2015 a CPCJ do Bombarral realizou o Encontro Regional das CPCJ do Oeste. Ainda nesse mesmo ano em maio, e atendendo à função preventiva, foram dinamizadas atividades com as crianças do concelho, inscritas nos JI e EB1, correspondendo à divulgação dos Direitos das Crianças. Já em 2016 decorreram na escola sede do Agrupamento de Escolas Fernão do Pó (AEFP), atividades vocacionadas para jovens com mais de 12 anos e subordinadas ao tema Educação para o Direito, abordando questões relativas às escolhas da juventude e as suas consequências à luz da legislação vigente, nomeadamente a Lei Tutelar Educativa e ainda a Lei Penal (para maiores de 16 anos).

“As infra-estruturas existentes no concelho (5 no total) complementam as restantes existentes no Agrupamento de escolas e restringem-se a salas/programas específicos dinamizadas pela Cruz Vermelha e pelo Contrato Local de Desenvolvimento Social (CLDS-3G). Para além destes, existem também equipamentos privados ou de instituições de solidariedade como o Centro social Paroquial.” Explica ainda Ricardo Daniel.

Recordamos que para qualquer denúncia de suspeita de maus tratos a crianças, deve utilizar a linha SOS Criança do IAC. A linha é gratuita e funciona das 9 às 19h, de segunda a sexta-feira. Basta ligar 116 111.

Para ajudar o Instituto de Apoio à Criança ligue 760 10 24 24 e já está a ajudar. Cada chamada tem o custo de 60 cêntimos mais IVA, dos quais 50 cêntimos vão diretamente para a Instituição. Conheça outras formas de ajudar em www.iacrianca.pt.




Toda criança no mundo
Deve ser bem protegida
Contra os rigores do tempo
Contra os rigores da vida.
Criança tem que ter nome
Criança tem que ter lar
Ter saúde e não ter fome
Ter segurança e estudar.
Lamber fundo da panela
Ser tratada com afeição
Ser alegre e tagarela
Poder também dizer não!
Carrinho, jogos, bonecas,
Montar um jogo de armar,
Amarelinha, petecas,
E uma corda de pular.

(Ruth Rocha)



Texto: Ana Cristina Pinto
Fotografia: Internet

Artigo publicado no Jornal Região Oeste
www.facebook.com/JRO-Jornal-Região-Oeste


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