Estará o circo destinado a morrer?

Senhoras e senhores, meninos e meninas, bem-vindos ao circo!




Esqueça as cortinas, o palco, as luzes, a música, a magia e os trapezistas, o contorcionismo e os animais adestrados. Hoje, o Jornal Região Oeste convida-o a entrar no circo por outra porta: a que leva aos bastidores. 
O circo é uma das expressões artísticas que sobreviveram a todas as revoluções culturais, políticas e sociais pelas quais a humanidade passou. Viver no circo e ser do circo significa descobrir o país de uma maneira diferente: através da janela de uma caravana a perspectiva do mundo é outra, porque este é um mundo nómada, um mundo de liberdade. (caixa)


Se por um lado, a tradição itinerante do circo possibilita levar o espetáculo ao público, até mesmo nos rincões do país, por outro, enfrenta enormes desafios.


Dois dos circos portugueses mais conhecidos do público fundiram-se para, como diz o empresário circense Renato Dallas, “combater a crise”. Assim, já se contam as duas mãos cheias de anos desde que se apresentam juntos como um só, no mesmo palco, os cerca de 40 artistas que para além dos números que encantam a plateia, fazem tudo o resto. Montam e desmontam a enorme estrutura de lona onde toda a magia acontece, fazem sonoplastia; iluminação; coreografias e ensaios; desenho e costura de roupas, e ainda tratam e treinam animais e conduzem camiões. “O publico já não é o que era. O nosso país está em crise. E os espectáculos, sobretudo, o circo vai por arrasto.” Lamenta.

Terá o circo perdido a magia? “ Não. Não perdeu. Quando a criança chega ao circo a magia está cá. Quando o pai vem com a criança ao circo ele recorda-se de que também já foi criança e revive essa magia. A magia está sempre presente.” Assegura.

O empresário responsabiliza sobretudo as novas tecnologias para a falta de público. “Atualmente as pessoas ficam muito em casa. Ficam agarradas à internet, às redes sociais e os miúdos também desenvolvem interesses nestes mundos virtuais. Por outro lado, cada vez mais são os avós que levam os netos ao circo. Os pais dividem-se por múltiplas tarefas e a vida profissional deixa pouco espaço para os momentos partilhados em família.”



Em troca de 2 horas e 15 minutos de total alienação das rotinas do dia-a-dia, paga-se 15 euros por bilhete de adulto e a criança tem entrada gratuita. “15 euros por bilhete? É caro? "Não. não é caro. As pessoas é que ganham pouco e além disso, há tanta oferta de espetáculos que se dispersa muito onde gastar o dinheiro.”

A estrutura que vemos montada tem capacidade para 700 pessoas que por norma não enche sequer metade. No natal costumam dar lugar a 3.500 porque a tradição ainda é ir ao circo nessa quadra festiva. Mas quem trabalha no circo também precisa de viver no verão. Como é que fazem se há menos público? São subsidiados? “O circo não é apoiado por ninguém. As câmaras municipais pensam que ganhamos fortunas e pedem valores exorbitantes para taxas, licenças… 5 mil euros para trabalhar 1 fim-de-semana! Quantas vezes se consegue esse valor em bilheteira? Não somos o Circo Solleil! Esses, sim são subsidiados, têm muitos apoios. Nós não temos nada, a não ser a nós mesmos.” Queixa-se Renato. “É triste chegarmos a uma localidade, pagarmos as licenças, taxas, EDP, água e demais despesas e depois não abrimos as portas por falta de público. Já nos aconteceu. O circo em Portugal está a ser desvalorizado e desacreditado.”



Estará o circo destinado a morrer? “Não, morrer nunca morre. Mas há cada vez mais colegas que largam as companhias e percorrem o país com pequenas estruturas, meia dúzia de números mais simples e trabalham como saltimbancos, como antigamente.” E continua: “Às vezes pedimos às câmaras para oferecerem um espectáculo às crianças e dizem-nos que não há verbas. Mas há verbas para o Tony carreira, Maria leal e outros… É de lamentar.”

Relativamente a incentivos à arte circense, Renato Dallas afirma que “a única vantagem que tínhamos do governo era o imposto de circulação dos camiões, mas até isso o estado nos tirou. Com isso, varias companhias caíram em desgraça porque não podem ter tantos camiões a circular.”

Renato Dallas vem de uma linhagem puramente circense. Na família há equilibristas, palhaços, trapezistas, contorcionistas. Renato é ventríloquo.

Como é viver no circo? “É maravilhoso. Nós nascemos no circo e não o deixamos por nada deste mundo.” Os pais de Renato já pertenciam ao circo. O avô não escolheu o circo mas o circo escolheu-o a ele no dia em que o coração lhe tomou as rédeas da vida e se apaixonou por uma artista de circense. Começava então a 1ªgeração do Circo Dallas. Hoje, Renato já tem filhos e netos, todos eles no circo. 

E se o circo nunca tivesse passado pela sua vida, se pudesse fazer qualquer outra coisa, o que é que se imagina a fazer? “Não me imagino a fazer outra coisa. Fui dos melhores ventríloquos em Portugal. Trabalhei em casinos, em várias salas de espectáculos e a dada altura pensei que já estava farto daquilo. A minha vida só vale a pena se for no circo.”



No mundo circense, nem todas as crianças do circo vão à escola. Algumas estudam através da internet, especialmente as que já fizeram o ensino básico. Até ao 4ºano, há das que vão, mas essas ficam sujeitas a processos de transferências a um ritmo alucinante. Uma escola diferente a cada 15 dias. Num país de pesadas e morosas burocracias é possível tornar as transferências céleres? “É. Somos artistas de circo. O Ministério da Educação prevê isso. No início de cada ano letivo, todas as crianças oriundas deste meio têm que se apresentar no ministério. Até à 4ª classe ainda vão à escola, mas a partir daí, continuam a estudar através da internet.”

E quantos jovens circenses seguem o ensino superior? “Ninguém aqui foi além do 12º ano. Não querem. A paixão deles é o circo e não pensam fazer outra coisa."

As crianças começam a treinar as suas habilidades desde cedo. Cerca de 1 hora por dia. Antes de entrar pela primeira vez no palco é preciso treinar pelo menos 2 anos consecutivos, com muita dedicação e disciplina. “É preciso que cada um descubra a sua vocação. Eu tentei ser aramista. Trabalhava em cima de um cabo de aço mas não era o que eu gostava. Até que um dia comecei “a falar pró boneco” (risos) e descobri que o que queria mesmo era ser ventríloquo.”


As estrelas da companhia continuam a ser os palhaços, mas os números mais arriscados são os que mais mexem com a adrenalina dos espectadores. Números aéreos e a “roda da morte” são os mais apreciados pelo público, porque o fator “risco” está mais presente.

E quando o azar acontece? Alguma vez alguém se magoou a sério? “Sim. Às vezes acontece. Mas faz parte e estamos preparados para isso. Aceitamos a vida que escolhemos como ela é.”

Distinta da área do público, iluminada e colorida há um outro lado que ninguém visita, e que se esconde por detrás das lonas que cobrem a tenda gigante onde a magia acontece. Atrás do palco, em volta da lona, existem roulottes, autocaravanas, autenticas casas sobre rodas, camiões carregados de materiais para os espectáculos, jaulas onde vivem os animais, leões, tigres, búfalos, cavalos, potros, e os cães que guardam o recinto presos a correntes de meio metro.

O circo que costuma apontar os holofotes para a pista, tem estado também sob os holofotes por outras razões. Razões que trazem dores de cabeça a empresários e artistas circenses. A presença de animais nos circos tem motivado debates acesos entre associações de proteção animal, partidos políticos e demais intervenientes contra ou a favor da utilização de animais para gáudio de espectadores. Tem o circo repensado outras formas de tornar o espectáculo apelativo? “As leis estão mal feitas. Os circos podem ter animais. Há uma fiscalização mais apertada, e foi criada uma portaria para não se reproduzirem mais animais, mas os que já temos podemos tê-los. E não podendo, o que lhes vamos fazer? Abatemos os animais que temos?” A pergunta de Renato Dallas espelha genuína apreensão. E continua: “Tive uma leoa que morreu com 33 anos. Provavelmente se estivesse na selva teria vivido 5 ou 6. Comigo viveu 33. Já não trabalhava, mas não a abati. Agora tenho dois leões que já não trabalham mas não os vou abater. Ficarão comigo até que a morte vá naturalmente ao encontro deles.”

Têm-se multiplicado o número de autarquias que proíbem a permanência de circos com animais. É o caso do Funchal, onde Renato Dallas já levou a sua companhia e foi obrigado a oferecer ao público números que não os incluíam. O resultado não foi o melhor. O público não aderiu. “Não nos importamos de não incluir animais. Desde que haja receita, até será vantajoso deixarmos de os ter. As pessoas não fazem ideia, mas os custos associados aos animais são elevadíssimos! Não é só a alimentação. Temos que comprar palha, ração, carne… e há ainda que fazer contas às despesas com veterinários, instalações, licenças, seguros, inspeções… Há muita gente contra a utilização de animais no circo, mas esses, os do contra, não vão ao circo. Vão os que estão a favor e esses vão porque querem ver animais.”

E quanto à tortura de animais durante os treinos? “Um dia, uma senhora disse-me: -Vocês colocam uma placa de ferro em brasa para treinar os elefantes. O elefante pousa a pata na placa em brasa e devido à dor levanta-a. É assim que os ensinam!- Fiquei a olhar para ela sem saber muito bem o que dizer, mas é demasiado estúpido pensar que se pode treinar um animal daquele tamanho recorrendo à tortura. Mesmo que os treinemos quando são jovens. Repare, se o animal sente dor não volta a repetir o processo.”


De onde é que vêm os animais? “São animais que nascem em cativeiro. Alguns vêm de jardins zoológicos. Vêm pequeninos. Criamo-los como outras pessoas criam um cão. Há amizade e afeto na relação que temos com eles.” E continua: “Quando os meus avós faleceram, o meu irmão não chorou, mas no dia em que morreu um tigre, agarrou-se ao tigre a chorar.”

Desde os tempos dos romanos que se diz que o povo gosta é de pão e de circo. Todavia, vão sendo poucos os tostões para o pão e pouco sobra para o circo. Os palhaços ricos estão cada vez mais pobres e ainda assim não deixam de oferecer magia. No circo, palco de génios do surrealismo, de mentes inquietas, mestres do ilusionismo, há quem faça malabarismos por sobrevivência. Podem ser faquirs e lançadores de chamas, trapezistas ou bailarinos, mas o espetáculo é pago, tenham lá paciência…

Senhoras e senhores, meninos e meninas, bem-vindos ao circo!


Texto/Entrevista: Ana Cristina Pinto
Fotografia: Ana Cristina Pinto

Artigo publicado no Jornal Região Oeste
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