(O) Cantar (d)os Reis



No Pereiro e Avenal, a tradição ainda é o que era!

Foto de JRO - Jornal Região Oeste.


Começou em Alenquer, e expandiu-se para o concelho vizinho, o Cadaval, no tempo em que

um decreto do governo extinguia o concelho e anexava várias das suas localidades à organização administrativa, no outro lado do Montejunto. Estávamos então em 1895. Todavia, as origens são pagãs e herdámo-las dos antigos cultos que representavam a sequência das estações e os ciclos agrícolas.

A eterna disputa entre a luz (o dia, o sol, o verão) e as trevas (a noite, a lua, o inverno), foi então trazida para rituais que ainda hoje fazem parte do nosso coletivo. Que o digam as gentes do Pereiro e Avenal. Nestas duas aldeias do Concelho do Cadaval, a tradição ainda é o que era. O povo sai à rua na noite de 5 para 6 de janeiro e canta os reis, os magos, que do Oriente seguiram a estrela para encontrar o Menino em Belém. E é essa estrela, bem como muitas outras figuras, que são também representadas nas fachadas dos edifícios públicos ou
nas paredes e portas das casas particulares. Enquanto no grupo de “reiseiros” composto maioritariamente por homens, há quem cante, outros pintam símbolos e siglas alusivas aos reis, mas também aos moradores. Uma linguagem rica em significado onde predominam as cores, azul e vermelho, em desenhos de vasos floridos e corações, elementos de alfabetos arcaicos, e o símbolo do ouro para significar riqueza.


Quem pinta as fachadas e as portas, segue à frente silenciosamente. Atrás, em maior número, os cantores, são liderados pelo apontador.
As mensagens de Bons Reis, vão sendo deixadas nas habitações, à medida que os pincéis e as tintas aí vão poisando, enquanto o elemento mais velho do grupo, o apontador, o portador da luz e conhecedor da tradição, lança versos, em algumas localidades sussurrados às fechaduras das portas, noutras como no Pereiro ou Avenal, a voz é projetada, alto e bom som, para que os restantes homens repitam as ladainhas e assim, de porta em porta se vão espalhando votos de felicidade e abundância.
Foto de ARCDM do Pereiro.
Tempos houve em que na noite do Cantar dos Reis, as casas deviam permanecer na penumbra, e o silêncio tinha que ser total. As vozes dos cantores não podia ser reconhecida. Nalgumas localidades de Alenquer, por exemplo, os grupos seguiam pelas ruas sob mantas que serviam não apenas para lhes ocultar os rostos, mas também para concentrar a voz. Hoje, nestas duas aldeias do Cadaval, há animação para todos, até para os visitantes. O grupo forma-se espontaneamente e vai crescendo ao longo das ruas que se enchem de símbolos pintados e versos cantados. 

Há paragens obrigatórias em várias habitações e adegas que abrem as portas para oferecer comida e bebida. As mesas repletas de farófias, Bolo-Rei e outros doces, complementam outro ritual, o da matança da cabra, cuja carne serve de manjar aos reiseiros que à meia-noite param no largo da aldeia do Pereiro. A festa termina de madrugada no alto da Serra de Montejunto, não sem antes homens e mulheres terem cantado à desgarrada. Eles, com versos espontâneos, elas, numa trova mais elaborada. E assim, de pintura em pintura, de verso em verso, de banquete em banquete, se perpetua uma tradição que como os Reis Magos, segue a Estrela do Oriente até onde ela se deixar pintar.

Uma tradição que transfere para as gerações mais novas saberes antigos. Pais vão-na passando aos filhos. Tudo para que não morra o que ainda nos vai enchendo de uma saborosa ingenuidade. E essa, é a magia que dá sentido à nossa existência.

Texto: Ana Cristina Pinto
Fotografia: Bruno Kalil/ARCDM do Pereiro
Artigo publicado no Jornal Região Oeste
www.facebook.com/JRO-Jornal-Região-Oeste

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