Kiburanga- A Terra dos Meninos de Ninguém

Quando o coração não conhece fronteiras




“Podemos não conseguir salvar todas as crianças que existem no Mundo, mas se conseguirmos ajudar as que aparecem no nosso caminho, já terá valido a pena.” SIMBA CHILDREN’S PROJECT



Imagine que de repente a sua vida precisa de adquirir um novo sentido e que lhe correm nas veias dois elementos essenciais para se lançar num novo rumo: espírito aventureiro e altruísmo em doses acima da média. O que faz? Provavelmente pensará em lançar-se num programa de voluntariado que o leve para longe da sua realidade, sobretudo para longe da realidade de quem tem o quanto baste, enquanto dado adquirido. Se faz parte deste restrito grupo de pessoas que não tem apenas o sonho de mudar o mundo, mas também a energia para o fazer, provavelmente um destes dias ver-se-á em Kiburanga, uma pequena comunidade de pouco mais de duzentas pessoas, localizada no distrito de Kuria, a 20 km da cidade de Migori, a 400 km de Nairóbi, e apenas a 5 km da fronteira com a Tanzânia. Isto é: no Quénia. Foi aqui que a jovem estudante de enfermagem, Catarina Reis, natural de Chão do Sapo, concelho do Cadaval, encontrou um propósito maior para a sua vida. Ajudar pessoas que não tiveram a sorte de nascer num país europeu, e só por esse fator alheio à sua vontade, sentem na pele, diariamente, o que é a fome a sério. O que é não ter acesso a água potável, cuidados de saúde, de educação ou habitação digna, com saneamento, por exemplo. No Quénia, como em muitos países do chamado terceiro mundo, os pequenos luxos a que nós estamos habituados, são para o seu povo, uma realidade difícil de imaginar e praticamente impossível de alcançar. “Não há casas de banho. Há latrinas. As casas são construídas com fezes de vaca, bebem água da chuva, ou vão buscá-la ao rio, com baldes sobre as cabeças. As crianças também fazem isto. Trabalham. Até pescam o peixe que vão comer. Vi crianças de três e quatro anos a pescar para ter o que comer”. Conta-nos Catarina Reis. 


O distrito de Kuria, onde se insere Kiburanga, é dividido em três sub-regiões: Kehacha, Masaba e Mabera. Kuria apresenta um alto nível de pobreza extrema, estimado em 61% da população. Entre as três regiões, a mais pobre é a de Mabera, precisamente onde Kiburanga está localizada. O alto nível de desemprego e analfabetismo, o clima desfavorável, que ora é seca ora é monção, a falta de materiais para a agricultura ou qualquer outro tipo de produção e por fim, a falta de conhecimentos, são fatores determinantes para o empobrecimento da população. Catarina Reis começa por contar que sempre quis ir para África numa missão humanitária. “Tive um período da minha vida sem muito o que fazer, e decidi que era uma boa altura para enveredar por uma aventura do género. Encontrei então uma organização muito interessante, a “Para Onde” que tem uma série de programas de voluntariado espalhadas por todo o mundo, mas na minha área, que é saúde, só tinham no Ruanda e no Quénia. Não me senti muito confortável a ir para o Ruanda, por causa dos conflitos armados que grassam no país, e optei por ir para o Quénia, apesar de também não o ter feito na melhor altura porque fui em época de eleições.” Quando chegou, conta que teve uma receção extraordinária. Nesse mesmo dia foi informada da situação de Andrew, um menino de quatro anos que pesava apenas pouco mais de seis quilos. “Não falava, não andava, era muito pouco reativo e das memórias olfativas mais marcantes que tenho é o cheiro do Andrew. Um cheiro fétido, a fezes e urina. Percebi que aquela criança estava a ser muito negligenciada e a minha primeira reação foi pegar-lhe e dar-lhe banho. Depois alimentei-o”.O Andrew, é só mais uma criança, entre muitas outras de Kiburanga que estão entregues a si próprias ou ao cuidado de irmãos mais velhos que não têm muito mais idade que eles. Falamos de meninos com dez ou onze anos que cuidam dos mais novos, com toda a escassez de que também são vítimas. Boa parte destas crianças são órfãs. Outras, ainda que ao cuidado das suas famílias, são também negligenciadas. “Não há nada lá. Falta tudo. Os pais não têm como suprir as necessidades básicas dos filhos. Têm, se calhar, uma coisa que talvez falte aqui entre nós: Têm muito carinho, muito amor, muita gratidão”. Explica-nos Catarina. “Os vizinhos às vezes dão comida. Mas há dias em que não comem e dormem sempre onde calha”. 


Outro grande problema que Catarina Reis encontrou em Kiburanga diz respeito à mutilação genital feminina. E aqui, os voluntários fazem o que podem para levar a comunidade a mudanças de mentalidades e de comportamentos. “A forma como mutilam os genitais das meninas, é terrível. Uma lâmina dá para várias crianças, com todos os perigos que isso acarreta, hemorragias, infeções, septicémias. São as mulheres que o fazem a outras mulheres, mães que o fazem às filhas”. Se elas aceitam sem se questionarem? Sim, algumas questionam-se, mas as que o fazem são imediatamente afastadas, excluídas das comunidades onde vivem. “O Quénia é muito tribal. E eles têm nas suas tribos regras muito definidas. As ideias diferentes não são bem-recebidas”. Explica. “Vivi aquela experiência com muita tristeza, porque a impotência, a vontade de ajudar e não saber como, é avassaladora”. A voluntária cadavalense confessa-nos que o pior da experiência foi a sensação de impotência. O querer muito fazer e tocar aquelas vidas de forma indelével, acabou por ser um feitiço que se virou contra o feiticeiro. “Fui eu que fiquei marcada pelas pessoas de Kiburanga para sempre. Nunca mais se olha para a vida com os mesmos olhos depois de uma experiência destas”.



Os habitantes de Kiburanga vivem em pequenas casas de adobe. Dedicam-se quase exclusivamente ao cultivo de milho e apenas algumas famílias têm pequenos rebanhos de vacas e cabras. O aumento atual no preço dos alimentos, como resultado da seca no Corno de África e da especulação agroalimentar, tem um impacto muito negativo na comunidade, cuja principal fonte de rendimentos vem da venda das suas colheitas. Mas apesar das carências, e de todas as adversidades, Catarina Reis garante-nos: “Eles têm um brilho indiscritível no olhar. Cuidam uns dos outros o melhor que podem”. “Numa noite em que eu estava a chorar e o próprio diretor da organização também estava a chorar, ele disse: o sonho da minha vida era construir aqui um orfanato. E eu perguntei: se o teu sonho é esse, então por que não começar já?” Logo que Catarina Reis regressou a Portugal constituiu a SIMBA CHILDREN’S PROJECT, da qual fazem parte oito pessoas. Diogo Cardoso, Ana Mafalda Reis, Artur Louro Silva, Isabel Morais António Pedro Santos e Ana Sofia Lucas, todos do concelho do Cadaval, e ainda Rita Costa do Bombarral. “A construção de um local onde as crianças desta comunidade, em Kiburanga (Quénia), possam denominar de “casa”, onde as suas necessidades básicas sejam asseguradas e se sintam protegidas e apoiadas é o principal objetivo a alcançar com este projeto”. Isto mesmo pode ler-se na página da Associação no Facebook em: https://www.facebook.com/simbachildrensproject/. 


A construção do orfanato para as crianças de Kiburanga já está em fase de andamento, mas o valor até agora angariado não é suficiente para o concluir. “Já conseguimos angariar perto de mil euros. Pensamos criar uma série de eventos, cujo objetivo final é angariar cinco mil euros, o valor necessário para a conclusão do orfanato”. A gestão dos valores angariados é rigorosa. Catarina Reis e Artur Louro Silva, explicam ao JRO que vão sabendo quase diariamente tudo o que está a ser feito, e em que fase estão as obras. “O Mike, diretor da organização de lá, envia-nos regularmente fotografias da construção e recibos dos materiais comprados, para sabermos quanto e em que é que o dinheiro é gasto. Não podemos permitir desvios porque lá as crianças têm pouco valor. Morrem constantemente e mais facilmente desviam donativos para os adultos, por exemplo, mesmo que para compra de medicamentos ou outras necessidades. Mas este projeto existe para as crianças. Para que elas tenham um futuro”. No próximo dia 2 de junho, a Associação SIMBA CHILDREN’S PROJECT, leva a cabo uma festa com vários DJ’s, no Pavilhão Municipal do Cadaval. “Aquilo que peço às pessoas é que não fiquem em casa e adiram a esta causa.” Catarina Reis deixa o apelo e nós, equipa do JRO juntamo-nos a ela e reiteramos o pedido. No próximo dia 2 de junho, não fique em casa. Ajude a Catarina a ajudar. Ajude a SIMBA CHILDREN’S PROJECT a cumprir o seu objetivo. Afinal, se não for para nos ajudarmos, o que é que andamos por cá a fazer?

Na foto Catarina Reis com o pequeno Andrew


Texto: Ana Cristina Pinto
Fotografia:Catarina Reis
Artigo publicado no Jornal Região Oeste
www.facebook.com/JRO-Jornal-Região-Oeste

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